O Instituto Moreira Salles (IMS) acaba de incorporar ao seu acervo de iconografia a obra do cartunista Angeli, composta por 2.100 peças entre charges, tirinhas, HQs e ilustrações, produzidas ao longo de quase cinco décadas de trabalho. Conhecido pelo humor ácido e pelo estilo inconfundível, Angeli marcou gerações com personagens icônicos como Rê Bordosa, Bob Cuspe e Wood & Stock, que refletiram com ironia o cotidiano e a política do Brasil entre os anos 1970 e 1990. Com a inclusão do material, o IMS agora tem direito à divulgação da obra do cartunista, enquanto os direitos autorais permanecem com o próprio Angeli.
A coleção, dividida em 700 charges, 700 tirinhas e 700 ilustrações originais, também inclui esboços que revelam o detalhismo do autor e permitem acompanhar seu processo criativo. O primeiro grupo de obras já está no acervo, e a chegada completa se dará em etapas até 2025, coordenada pela arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru, esposa do artista. “O acordo com o IMS vai permitir que a obra dele seja bem acomodada e preservada para as futuras gerações”, declarou Carolina. Ela destaca ainda o papel de Angeli como observador das transformações políticas e sociais no Brasil: “Suas charges e tirinhas refletem essa transformação”.
Preservação e legado: uma nova fase para a obra de Angeli
A inclusão da obra de Angeli no IMS também atende a uma preocupação pessoal do cartunista com a preservação de seu acervo, motivada pela participação na exposição de Millôr Fernandes, realizada em 2018 no IMS Paulista. “Ele guardou cuidadosamente a maior parte do que produziu, de uma forma metódica e organizada. Isso pode parecer contraditório para seus fãs, mas é evidente a preocupação com sua conservação”, afirma Julia Kovensky, coordenadora de Iconografia do IMS.
Além da preservação, o acervo ficará acessível a pesquisadores e ao público, um ponto que agradou aos filhos de Angeli, Pedro e Sofia, que veem na iniciativa uma oportunidade de o trabalho do pai alcançar novas gerações. “Ficamos felizes em saber que uma parte da obra vai estar bem guardada e exposta para que gerações que não o conhecem possam saber quem é Angeli e quem ele retratou ao longo dos anos na sua obra”, comenta Sofia.
Reconhecimento e inspiração na cultura pop
Angeli é amplamente reconhecido como um dos maiores cronistas gráficos do Brasil, e seu impacto vai além das páginas da imprensa. Nos anos 1980, sua revista “Chiclete com Banana” marcou a cultura pop brasileira, abordando temas e personagens inusitados que refletiam a juventude paulistana e o ambiente underground da época. A revista lançou o famoso grupo de tirinhas “Los Tres Amigos”, formado por Angeli, Laerte e Glauco, com uma linguagem que misturava humor e crítica social.
Para Adão Iturrusgarai, também cartunista e amigo próximo, Angeli é um dos maiores artistas gráficos do século XX, que mereceria reconhecimento mundial. “Se fosse americano, ele seria o Robert Crumb”, diz Iturrusgarai. Já a cartunista Laerte, sua grande parceira nas páginas da “Folha de S.Paulo” e outras publicações, destaca o valor estético e plástico do trabalho de Angeli, que sempre primou pela qualidade visual e pela intensidade dos personagens.
Acervo ampliado: um panorama das artes gráficas no IMS
A entrada da obra de Angeli reforça a estratégia do IMS de ampliar o panorama das artes gráficas no Brasil, que já contava com acervos de outros grandes nomes da iconografia nacional, como Millôr Fernandes, Claudius e J. Carlos. Para Kovensky, Angeli transcendeu o papel de cronista, criando uma representação gráfica que captura o imaginário da cidade de São Paulo e de gerações inteiras de brasileiros. “O Angeli traduziu graficamente a cidade de São Paulo, acompanhando a política, os costumes e a cultura do século XX de uma forma visualmente marcante”, afirma ela.
O impacto cultural de Angeli: uma vida de prancheta e provocações
Arnaldo Angeli Filho, nascido em 31 de agosto de 1956 em São Paulo, tem uma história de vida que se confunde com a do rock e da cultura underground na capital paulista. Depois de começar sua carreira aos 14 anos, ele ingressou no jornal “Folha de S.Paulo” em 1973, onde assinou sua primeira colaboração após recomendação da chargista Hilde Weber. Dois anos depois, foi contratado pelo jornal, permanecendo até 2022, quando anunciou sua aposentadoria devido a uma doença neurodegenerativa.
O artista foi celebrado em várias mídias, com homenagens como a Ocupação Itaú Cultural em 2012, em São Paulo, e uma exposição em Portugal, em 2023. Além disso, no campo audiovisual, é representado no curta-metragem “Dossiê Rê Bordosa” e na série animada “Angeli The Killer”, produzidos pelo cineasta Cesar Cabral. No teatro, o grupo Parlapatões também o homenageou com a peça “Parlapatões revistam Angeli”.
Um marco para a cultura visual brasileira
A inclusão da Coleção Angeli no IMS representa um marco para a preservação e difusão da cultura visual e da imprensa ilustrada brasileira. Em uma trajetória que mistura humor, crítica social e um estilo visual único, Angeli continua a inspirar, mesmo após sua aposentadoria. Com a coleção disponível para o público, o IMS reforça seu papel como guardião da memória gráfica do país, oferecendo uma visão rica e crítica do Brasil dos últimos 45 anos, capturada pelo traço inconfundível de Angeli.