Crítica: Show ‘Rainhas dos Raios’ de Alice Caymmi

Alice Caymmi tornou-se a própria Iansã: fez ventar, rebolou, sensualizou, incorporou, atiçou, emocionou a todos e mostrou como fazer de um show uma experiência quase extrassensorial e hipnotizante no lançamento da sua turnê nacional “Rainha dos Raios”, na Sala Cecília Meireles. O evento lotou o local em plena quarta-feira, 15 de julho. Vamos aos destaques do show, que tem conceito e direção geral de Paulo Borges, diretor da São Paulo Fashion Week e coreografias de Bruno Cezário.

No palco, três painéis de LED – que se tornam videocenários – criados por Richard Luiz, um pedestal com um cavalo de carrossel e outro apenas com um cano, como um pole dance. À primeira vista simples, até começar “Iansã”, música de Gilberto Gil e Caetano Veloso, notória na voz de Maria Bethânia. Alice surge toda de preto, usando um chorão (ornamento feito de miçangas que preserva os rostos dos orixás dos olhos dos humanos) e um grande laço à frente do corpo, como se estivesse incorporada pela divindade que dá nome à música. Em meios às projeções de tempestades, abre-se a atmosfera dark, sombria e um tanto quanto subversiva que percorre boa parte do show.

Inclusive, esses painéis se tornam os grandes aliados de Alice, além do músico Lucas Vasconcelos (que comanda alguns instrumentos e as bases pré-gravadas instrumentais). As projeções, produzidas pela Prototipo Filmes, complementam mensagem relatadas nas músicas, subentendem sentidos e mostram sensações.  A segunda música, “Paint it Black”, dos Rolling Stones quebra o gelo inicial e dá vazão à veia bem teatral que também rege o espetáculo. “Como Vês” traz uma projeção em plano sequência de ruas e locais de São Paulo. “Meu Recado”(composição dela com Michael Sullivan) e “Meu Mundo Caiu” de Maysa (em um versão tango moderno) e “Antes de Tudo” (uma valsa circense com ópera) reúnem-se em um bloco de canções que falam de amor, de todos os estilos e dores diferentes.

Dois momentos merecem destaque: um deles para “Bang Bang”(My Baby Shot Me Down), canção de Cher, interpretada por Alice de forma tão triste e poderosa, que há momentos em que ela parece chorar, sem ser piegas ou cafona. Com forte backdrop de cores como amarelo e laranja, que chegam a doer os olhos. Talvez seja mesmo esta a proposta. O final tem direito a série de tiros que “matam” a cantora e enche o “palco” de sangue. “Princesa”, funk de MC Marcinho que está em seu CD tem um número bem especial. A presença da música tanto no CD quanto no show mostra que Alice não está nem aí para regras sobre o que cantar ou não. Ela quer se divertir e dançar seu funk, que tem até violinos nos arranjos e versão “meio” indie, sem soar moderninha tentando se encaixar em uma vertente.

Para o show, foi incluída “’Mon Amour, Mon Ami”, de Marie Laforêt, já cantada também por Carla Bruni (cantora e ex-primeira-dama da França). Mas com aquele toque de Alice Caymmi: performance sensual em uma cadeira e o palco tomado pela projeção de uma cortina vermelha de um cabaré (um quê de Moulin Rouge). Só ela pensaria em colocar um mega batidão funk em um clássico lançado há 48 anos. A sensação é de estar em um verdadeiro baile, com as pessoas sentadinhas querendo levantar para dançar. A excentricidade da situação trouxe um casamento de informações que ficou ótimo.

Continuando no clima do batidão, um medley inusitado com participações especiais. Três músicas falando de diferentes momentos de amor: um sobre dispensá-lo, outra sobre a magia do amor e a última sobre o ciúme. Cinco dançarinos de funk mandando muito bem no passinho (dança que tem tomado cada vez mais espaço) abrem a apresentação de “Joga Fora”, sucesso de Sandra de Sá. O clima muda para uma boate disco em “I Feel Love”, de Donna Summer. Os meninos do funk fazendo uma coreografia divertidíssima (que deve, inclusive, ter sido criada por eles mesmos). É então que ouve as primeiras notas de “Lay All Your Love On Me” do Abba. O que se assiste é de uma genialidade imensa. Unir a música do famoso grupo sueco com passinho de funk é surpreendentemente pop.

Outro destaque é a apresentação de “Sou Rebelde”, eternizada por Lilian em 1978, com versão original da cantora Jeanette (1971) . Com o palco todo vermelho, Alice veste-se com uma roupa cibernética de neon, simulando uma jaula, bem condizente com a letra da canção, que ganhou roupagem eletrônica, e muito mais cara de música de “fossa”. É um momento esplêndido de se ver. Confira o vídeo abaixo:

“Homem”, outra canção de Caê, fecha o show extra-oficialmente, com Alice em meio a linhas de batimentos cardíacos, como se estivesse sendo monitorada medicamente. Seus servos a obrigam a vestir roupas masculinas e ao final, a levam desfalecida. O show termina mesmo com um bis de “Como Vês” e Alice plena e leve agradece a todos (com os dançarinos de funk ali também) pela presença.

Ela assinou recentemente com a Universal Music para seu segundo álbum, “Rainha dos raios” (que, inclusive, está esgotado) e lançar seu primeiro DVD, gravado em 11 de dezembro de 2014 em apresentação no Teatro Itália, em São Paulo (SP). Alice Caymmi vai da voz quase chorosa a altos gritos (muito bem dados), passando pelo lírico. E sabe como poucas aproveitar o espaço do palco. Um espetáculo com ares de megaprodução, coreografias, marcações de espaço, porém nada a amarra. Mesmo que estivesse só ela, à capella, nota-se que ela tem todo o potencial para segurar. Ela parece mais do que solta. É segura e pontual.

Um show marcado pelo lado teatral e intimista. Como se Alice fizesse uma apresentação para cada um que ali estava. Apesar de ter dado apenas um boa noite, Alice conversou o tempo todo com o público, fosse por expressões, risos, gestos, deboches. Parecia estar incoporada. Em alguns momentos, era criança. Em outros, mulher sexy e envolvente. Em outros, uma drag queen andrógina e ambígua. Que mais artistas se arrisquem e tenham a chance de se jogar em um projeto como esse. Que Alice não demore muito para trazer a tempestade de Iansã e seu “Rainha dos Raios” para solo carioca.