Diretor de ‘Sabe quem Dançou?’ relata dificuldades de produzir peça no Brasil

Religião, corrupção, roubos, prostituição, milícia e sexo se misturam e matar talvez seja a única maneira de sobreviver na peça "Sabe quem Dançou?" com o ator Hermes Carpes

Hermes Carpes está com a agenda de apresentações lotada em todo o Brasil com o espetáculo “Sabe quem Dançou?“. A peça está em cartaz até 30 de outubro no Teatro Glauce Rocha, no centro do Rio de Janeiro. O Almanaque da Cultura conversou com o diretor da montagem que revelou ter descoberto o texto do espetáculo há 17 anos, quando ainda estudava na Casa das Artes de Laranjeiras, na Zona Sul do Rio.

“Sabe quem Dançou?” tem uma postura realista que provoca choque e reflexão sobre uma questão conhecida, mas muitas vezes ignorada: a marginalização de jovens de rua. A remontagem já teve Clodovil Hernandez no papel principal em 1991 e também já ganhou o Prêmio Shell.

Mesmo sendo escrita e ambientada nos anos 1980, o espetáculo traz as mazelas que ainda são problemas no Brasil atual. A história gira em torno dos personagens Madonna e Passarinho, dois homens perdidos que vivem em um lugar onde religião, roubos, prostituição, milícia e segredos se misturam e, talvez, matar seja a única maneira de sobreviver. O texto é de Zeno Wilde, mesmo autor de “Blue Jeans” e “Zero de Conduta”.

Almanaque da Cultura: De onde surgiu a ideia de montar este espetáculo?
Hermes Carpes:
Descobri este texto há 17 anos, enquanto ainda estudava na Cal (Casa das Artes de Laranjeiras). Eu já tinha assistido “Zero de Conduta”, em Porto Alegre, e sonhava poder assistir “Blue Jeans”, ambas do mesmo autor, pois o universo do dramaturgo me encantava, e saber que este texto não era montado há tanto tempo, mas ao mesmo tempo tão bom e tão forte, me causou quase uma obsessão em montá-lo. Poder viver aquela história era um presente para qualquer ator. Eu queria fazer com a realidade que o tema pede e, para isto, precisava de atores que conseguissem entrar de cabeça no que eu pensava.

Almanaque da Cultura: Como foi o processo de seleção de atores?
Hermes Carpes: A busca foi difícil, pois a maioria se preocupava com o fato de ficar nu, e isto era o menos importante da história. Até ver que o Saint-Clair de Castro, o Fabiano Bernardelli, o Felipe Camara e o Kadu Flu. Eram estes atores que eu procurava. No meio do caminho fui deixando meu cabelo crescer, pois não queria usar peruca e cair no caricato. Se alguém iria pegar o Madonna pelos cabelos, este cabelo seria o meu. O meu corpo foi mudando. Eu queria que minha imagem chocasse ao lado de garotos tão bonitos. Eu queria mostrar a realidade que as paredes escondem. Eu não me consideraria um ator realizado se eu não tivesse feito este papel.

Atores em cena na peça “Sabe quem Dançou?” (Foto: Reprodução/Facebook)

Almanaque da Cultura: Por que montar uma peça escrita nos anos 80?
Hermes Carpes: Porque ela é fantástica. Eu queria resgatar aquele teatro que não é mais feito. Hoje a preocupação é estética ou saber quanto de bilheteria vai dar ou se tem ator famoso no elenco. Eu queria contar uma história com personagens fortes, com atores viscerais que fizesse as pessoas irem para casa discutindo sobre o que elas acabaram de assistir.

Almanaque da Cultura: Como é trabalhar com temas tão delicados, como a prostituição e a violência?
Hermes Carpes: Nas nossas apresentações pelo interior do país, fomos abordados várias vezes por pessoas de várias idades, que diziam que tínhamos a obrigação de apresentar esta peça em faculdades ou em escolas de segundo grau, como uma forma de alerta aos jovens que saem das suas cidades, sem estarem preparados, a procura de melhores oportunidades e acabam desviando de seus objetivos. E esta mensagem está sendo passada. Eu fiz dois anos de laboratório em locais de prostituição, casas noturnas , favelas, conversando com moradores de ruas, garotos de programa, travestis , agiotas, cafetinas, sem julgar, apenas tentando entender como funciona a vida de cada um e descobri que as pessoas que estão fora deste universo, colocam eles numa sacola só, e isto é totalmente errado. Eu quis dar voz e uma cara á estas pessoas.
O ator Hermes Carpes como o Madonna: “fui deixando meu cabelo crescer, pois não queria usar peruca e cair no caricato” (Foto: Reprodução)
Almanaque da Cultura: A peça trata de temas que ainda são muito atuais, como você vê esta questão?
Hermes Carpes: Ela se passa em 1989, mas se eu falasse que se passa em 2020, não iria fazer diferença. Enquanto as nossas leis continuarem a defender bandidos, a peça sempre será atual. Enquanto eleitores se venderem por migalhas e votarem só em causa própria, a peça continuará atual. Enquanto ladrão e assassinos forem soltos na rua, por causa de burocracia, nossa peça será atual. Eu que sou antigo. Aprendi que o bem compensa.
Almanaque da Cultura: Como misturar religião, milicia, sexo e politica sem agredir o espectador?
Hermes Carpes: Na verdade o mais importante na peça, não são as profissões ou atividades das pessoas, e sim o caráter delas. Ex: O Madonna é muito religioso, mesmo que a fé esteja na imagem cultuada da Madonna. Todas as cenas de intimidade foram tratadas com muito carinho e cuidado, para que não caíssem na gratuidade ou na vulgaridade. Temos um Pastor, que poderia ser um padre, um monge , pai de santo… Eu coloquei um pastor, pois o que acontece na peça, aconteceu comigo quando eu era jovem, mas eu consegui me defender, o Mazolinha não. E ninguém é 100% ruim ou bom. E na peça todos tem um momento de ética.
Saint-Clair de Castro, Fabiano Bernardelli, Felipe Camara e Kadu Flu dão vida a personagens oprimidos em um mundo violento (Foto: Reprodução/Facebook)
Almanaque da Cultura: É muito difícil produzir teatro no Brasil?
Hermes Carpes: Difícil demais. Eu vivo de teatro e, infelizmente, por melhor que você seja, se não estiver na TV, fazendo qualquer coisa, você terá 897 vezes mais trabalho para levar o público até você. Mas eu tive grandes mestres que me ensinaram que o espetáculo tem que ter a mesma qualidade se tiver apenas uma pessoa na plateia ou mil. Eu já viajo o Brasil há um ano e meio com a peça “Não Sou Gordo, São Seus Olhos” sem patrocínio e posso me orgulhar das pessoas que acreditam no meu trabalho e me apoiam nesta jornada. Sem a Kadu Flu Produções, por exemplo, a turnê do “Sabe quem Dançou?” seria inviável.
Almanaque da Cultura: O que espera com os temas abordados na peça?
Hermes Carpes: Que as pessoas se divirtam, reflitam e valorizem mais o ser humano e a vida que elas levam.